Liudmila Ulítskaia guardou texto por quase meio século na gaveta.
O roteiro de “A Peste”, de Liudmila Ulítskaia (1948-), foi escrito em 1978, quando a jovem escritora participava do curso de dramaturgia de Valéri Frid (1922-1998). Foram necessários 42 anos para que o texto saísse da gaveta e fosse publicado, no último mês de abril, após ganhar atualidade com os acontecimentos da nova pandemia de coronavírus.
Em 1939, a peste foi levada da cidade de Sarátov a Moscou pelo microbiologista Abram Berlin. Ao realizar experiências em animais, o cientista usou o patógeno vivo da peste e foi obrigado a observar uma quarentena rigorosa.
No entanto, após receber uma chamada telefônica urgente de Moscou, teve que se dirigir imediatamente à capital, causando a epidemia. Berlin hospedou-se no Hotel Nacional, no centro da capital, e foi a um restaurante e a um salão de cabeleireiro.
“Durante a quarentena, eu estava arrumando meu armário de livros e as prateleiras de papeis e encontrei esse roteiro. Foi aí que entendi que ele convém, da maneira mais precisa possível, à situação atual”, disse Ulítskaia à revista russa “Snob”.
“Presume-se que, se no primeiro ato a espingarda oscilar no muro, no último ela deva atirar. Em anos diversos escrevi muitos textos que não publiquei. E, de repente, vi que a espingarda atirava mesmo. E não eram balas de festim. O roteiro de ‘A Peste’, criado muito tempo atrás, mostrou-se, de repente, atual”, completou a autora.
A obra na íntegra está disponível na plataforma Bookmate, em russo.
Capa de "A Peste", que está disponível na íntegra (em russo) na plataforma Bookmate. O Russia Beyond apresenta um trecho da obra exclusivo em português.
AST, 2020Com a autorização da agente Tatiana Stoianova e de Ulitskaia, Marina Darmaros verte aqui um trecho da obra em português:
A Peste
Através do enorme deserto nevado, iluminando uma tremeluzente nódoa e o ágil turbilhão de neve com os faróis, passa uma composição de vagões de carga. Vagarosa e demoradamente. Transpõe a cidade atulhada de montes de neve, dificilmente visível sob ela. Dissolve-se sob a bruma nevada.
Um longo edifício de um andar no fim do mundo está todo coberto de neve. Vê-se uma luz fraca em diversas de suas janelas. Também sua placa está coberta de neve, e não é possível identificar sua inscrição.
Em um quarto, junto ao forno de ferro, está sentada uma velha tártara com um lenço amarrado baixo na testa e outro, grande, por cima. Ela corta, com uma faca pequena e afiada, pequenos pedaços de carne seca, mastiga desdentada. Tem um olhar insensato-ensimesmado.
Em um compartimento isolado, está Rudolf Ivanovitch Maier. Ele veste trajes de proteção, máscara. Seu rosto não é visível. As mãos estão cobertas por luvas. Com uma longa agulha, injeta uma cultura em placas de Petri. A lâmpada a álcool queima, sobressaltando-se a cada um dos movimentos dele. Mas os movimentos são fluidos e mágicos.
O telefone toca longa e insistentemente na mesa diante da porteira. Ela não se apressa em tirar o fone da base.
— Ô, tinhoso, grita, berra... – rosna a velha. O telefone não se acalma. Ela pega o fone:
— "Labiratório"! É de noite, é de noite! Que é que você está gritando? Não tem ninguém. Não posso escrever, não. O Maier está! Espera aí. Espera!
A velha entra nas profundezas do corredor, bate na porta distante e grita:
— Maier! Telefone! É Moscou te ligando! Vá atender!
Ela empurra a porta, mas ela está trancada. Ela bate de novo e grita:
— Maier! Vá atender! O chefe bravo está te chamando!
Maier, no compartimento de testes, pôs de lado a agulha, ficou paralisado. A batida o impacienta.
— Já vou! Já vou! — a voz soa muda sob a máscara. A máscara saiu um pouco do lugar, a vedação caiu sob o queixo.
A velha ouviu, foi até o telefone e gritou no fone
— "Pera", já mandei esperar!
No vestiário, Maier tira as luvas, a máscara, o traje protetor contra a peste, limpa alguma coisa e, afinal, corre para o telefone.
— Desculpe, eu estava no compartimento. Sim, sim, experimentos noturnos. Vsiêvolod Aleksándrovitch, não estou preparado. Sim, a princípio, sim. Com certeza. Mas ainda preciso de um mês e meio ou dois. Sim, um e meio... Mas não estou pronto para a apresentação... Se o senhor coloca a pergunta dessa maneira... Mas acredito que a apresentação seja precipitada. Eu não arco com a responsabilidade. Sim, sim, adeus.
Ele coloca o fone na base contrariado. A velha olha com atenção para Maier:
— Grita comigo, grita com você... Tinhoso, que chefe irritado. Coma! — estende com a faca um pedaço de carne seca. Maier balança as mãos:
— Não, obrigado, Gália – e automaticamente pega um pedaço e mastiga.
— Vai dormir. Vai pra casa! Pra que ficar aqui?
A manhã ainda não havia despontado, a janela estava escura. Um sinal cauteloso à porta. Uma moça jovem acende uma lampadazinha, levanta-se silenciosamente e vai até a porta. A criança dorme.
Rudolf chegou à casa de sua namorada secreta, Anna Anatólievna. Vestindo um casaco curto de pele coberto de neve, ele tira apenas o chapéu.
— Aconteceu alguma coisa? – agita os cílios, assustada, Anna. Rudolf desabotoa o casaco.
— Nada de mais. Hoje à noite recebi ordens para ir a Moscou. Para fazer uma apresentação ao colegiado. O trabalho ainda não está concluído. É uma burrice! Mas eles não querem ouvir coisa alguma. Não importa o quê. Eu vou, Anniuta. Vim lhe dizer.
— Agora mesmo?
— À noite. Eu suspendi o experimento. É preciso fazer algo.
— E com quem ficará a Macha?
— Eu já combinei. Saviôlova ficará com ela uma semana.
— Tudo bem com ela?
— Na mesma. Não pregou o olho. Fica sentada na cadeira, com os olhos em um ponto...
Anna coloca a palma da mão na face de Rudolf, passando até a testa.
— Quiçá você possa ir comigo a Moscou? Hein? Por uns três dias?
— Como? Agora mesmo? – surpreende-se Anna.
Na borda da cama surge uma cabeça cacheada, radiante ao ver Rudolf, de uma menina que já lhe sobe no colo.
— Ah, acordou nossa Krôssia, acordou? — ele a afaga no cocuruto. — Combine com Maria Afanássieva que ela durma com a Krôssia e partamos.
— Mas assim, imediatamente... Não posso. Agora, apesar de eu estar de férias, tenho plantão na escola...
— Peça que cancelem, adiem, pense em algo, hein?
— Rúdia [diminutivo de Rudolf], vou tentar, você sabe como eu queria...
— Passe-me um telegrama para o hotel “Moscou” e eu te encontro, que acha?
... No compartimento do vagão de segunda classe, há quatro pessoas. Rudolf está sentado próximo à porta, com o casaco de pele cobrindo o ombro. Perto dele há um homem robusto, com um rosto duro e torto. Parece mais ser jovem que velho. Próximo à mesinha, do lado oposto a Rudolf, há uma mulher bonita de tranças altas, maquiada, elegante, que coloca sua comida sobre ela. E, em frente a Rudolf, está um moço de aparência um tanto rural, mas corajoso e falante.
— É outra coisa assim — diz a mulher. — Gosto quando tudo está bonito. Agora ninguém pode colocar a mesa e eu gosto quando os garfinhos, colherinhas e pratinhos estão todos no lugar, e que haja guardanapos... — deleita-se com a linguiça cortada retinha e os pedaços de pão cuidadosamente distribuídos. O Torto olha com grande interesse para a mulher, e o Moço continua o assunto já iniciado há muito.
— É isso o que eu digo, Liudmila Ignátievna, escrevi a carta e estou esperando para ver se respondem ou não. Ele é um acadêmico... não é qualquer coisa! Não é esse povinho do nosso instituto de agricultura, que não dá apoio, nem nada...
— Ah, coma... Coma, olhe! — sugeriu Liudmila Ignátievna, e o Torto pegou um sanduíche. Entretido em sua própria conversa, o Moço também estendeu a mão.
— Mas eu resolvi sozinho, por minha conta e risco. Eu os peguei e comecei a ensinar no galpão, comecei a acostumá-los com o frio. Já estamos na terceira geração. São resistentes ao frio. Eu fiz uma apresentação, eles riram de mim. Então, escrevi. Por que não? Direto para a Academia. Não se passaram nem duas semanas e recebi o convite. Sem dizer palavra, peguei uma folga e estou indo. Toda nossa família é assim: se alguém decide fazer alguma coisa, já não deixam.
Um frio passa pelos ombros de Rudolf. O jovem fala com ele.
— E o senhor, desculpe-me, qual sua especialidade?
— Eu? Sou médico.
— Isso é bom, isso é bom. Então o senhor também entende a ideia biológica. Sobre a herança qualitativa positiva sob a influência da criação... A criação correta, quero dizer...
— Hm-hm... — protelou Rudolf. — Eu, desculpe-me, sou microbiologista, então temo que meu objeto de pesquisa viva sob leis diversas...
— Como diversas? Como diversas? — disse o Moço, esquentado. — Todos vivemos sob uma mesma lei, o Marxismo-Leninismo!
— Ah, o senhor coma, coma! — começou a enervar-se a senhorinha.
— Isto é claro, isto não levanta dúvida — concordou, sério, Rudolf. — Só que os micróbios não sabem disso.
— Em nossos tempos, todos devem saber disto! — o jovem continuou, arrebatadamente. — No ano passado, nossa média mensal de fevereiro foi de vinte e nove graus. E os meus gansos sobreviveram, admiravelmente. Em um galpãozinho de compensado de nada, diga-se. Afinal, se, digamos, forem realizados experimentos com gado grande cornudo, se ele for criado e acostumado com o frio, pode-se deixar de construir estábulos. Aqui surge um baita benefício ao Estado...
A porta se abriu e a comissária se enfiou no compartimento.
— Vou colocar uma velhota com vocês, ela está de pé no vestíbulo, na área da porta, tudo bem? Vocês deixam? Ela só ficará quatro horas, está bem?
— Sim, deixe, deixe que ela se sente! — o jovem se deslocou, liberando espaço, e a velhota se enfiou pela porta com suas trouxas.
— A senhora pode me trazer chá? — perguntou Rudolf Ivánovitch à comissária.
— Que chá?! Agora tem que esperar até de manhã, já beberam todo o chá — atalhou a comissária.
Eles começaram a se ajeitar. Rudolf trepou no beliche, o Torto se arrumou embaixo, tirando as botas de verão orladas com pele canina. A velhota, segurando as pernas em grandes botas desconjuntadas, aboletou-se em um canto. O Jovem foi para o vestíbulo.
No vestíbulo havia uma gaiola com dois gansos. Ele se inclinou, ofereceu um pedaço de pão molhado às aves, que acordavam, e acariciou seu pescoço saliente.
— Muito bem, muito bem! Vamos à Academia, então é isso! —passou a mão pelo pescoço branco e espesso.
Rudolf se enrola na roupa de cama leve do trem, veste o chapéu de pele.
O Torto pergunta, em voz baixa, à bela Liudmila Ignátievna:
— A senhora é de Moscou "memo"?
— Sim, nasci moscovita. Vivo na rua Lesnáia desde que nasci.
— Lesnáia... onde é?
— Próximo à estação de trem Bielorrússia.
— Conheço, conheço a Bielorrússia. E aí, a senhora podia me convidar a sua casa, hein?
— Nossa, nem nos conhecemos direito e já quer ser convidado...
— Eu iria se me convidasse. A gente se conheceria melhor... É só dar o endereço...
A velhota olhava atentamente as botas do Torto, que estavam bem diante dela. Eram botas boas aquelas.
E, novamente, através do deserto nevado passa uma composição. Na luz dos faróis, uma nódoa de neve e os ventos, montes e mais montes de neve...
A comissária abre a porta do compartimento de segunda classe com um copo de chá:
— Ei, quem é que queria chá? Era aqui?
Todos ainda dormem. Rudolf Ivánovitch desce da parte de cima do beliche e pega o chá.
— Obrigado! Muito obrigado!
— Certo.
A comissária sai. Vai até a estufa, lava os copos. No vestíbulo, a porta está entreaberta. Os passageiros despertam. O trem diminui a velocidade.
— Ah, saiam, por favor, preciso me vestir! — exige Liudmila Ignátievna.
Torto, que despertou, tateia com as mãos as botas. Elas não estão ali. A velhota também não. Mas no chão há um par de sapatos femininos pisoteados com cadarços.
— Ela passou a mão! A velha! Passou a mão! — anuncia alegremente o Moço.
— Como passou a mão? — diz o antigo proprietário das botas, sem entender. — Como isso? Vou mostrar a ela! Me dá suas botas para eu sair para a estação! — pediu ele ao Moço.
— Qual é, eu preciso sair também! Como é que fico nessa?
— Como assim, como assim? — segura o riso Liudmila Ignátievna.
— E o senhor, desculpe, não vai sair? Se não vai, eu poderia pegar sua bota, hein? Eu preciso sem falta ir para a estação... — a vítima se dirigiu agradavelmente a Maier. Maier franziu a testa, pediu uma explicação.
— O que está acontecendo?
— Sabe, a velhota passou a mão na minha bota, eu tenho que ir para a estação, chamar alguém para pegá-la — disse, nervoso, Torto.
— Pegue — disse Rudolf franzindo o rosto, e o vizinho de compartimento meteu-se nas botas de Maier.
Seção de telégrados da estação de trem. Torto abre a porta abruptamente.
— Aonde é que o senhor acha vai? É proibido entrar! — grita a funcionária.
Torto tira um documento, coloca na cara dela e ela se instala. Ele se senta em uma cadeira.
— Conecte-me à linha...
E novamente o trem percorre localizações povoadas da Rússia Central, já se aproximando de Moscou.
Estação ferroviária. Estação Kazánski, claro. A gente abandona o vagão. Maier caminha desanimadamente. A multidão se dispersa. Diante do vagão resta apenas o jovem com a gaiola, na qual se encontram os gansos rijos, congelados. Ele está sentado de cócoras diante da gaiola e murmura:
— Mas o que é que é isso? O que é que é isso? Vocês já não passaram um frio desses?
As lágrimas correm por seu rosto vermelho e saudável.
Marina Darmaros é doutora em Cultura e Literatura Russa pela Universidade de São Paulo. É subeditora do Russia Beyond e tradutora de russo e inglês.
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