“Não entendi nada”, disse o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan depois de assistir “Moscou não acredita em lágrimas” (1980) várias vezes — oito, de acordo com algumas fontes. Reagan explicou que a “obsessão” com o melodrama cult soviético do diretor Vladimir Menchov era, na verdade, sua busca de penetrar na “misteriosa alma russa”. O que faz muito sentido, dado o “degelo” entre Moscou e Washington à época, logo antes do encontro de Reagan com o presidente soviético Mikhaíl Gorbatchóv.
Na cerimônia de encerramento da Cúpula de Genebra, o líder soviético Mikhaíl Gorbatchóv e o presidente dos EUA Ronald Reagan.
Bettmann/Getty ImagesO título levou o Oscar de 1981 na categoria “Filme Estrangeiro” e se manteve como um clássico cult por várias gerações posteriormente, com o título retumbando na cabeça de todos com quem cruzasse. Mas o que essa expressão russa que rendeu título ao filme significa?
A verdade sobre uma cidade cruel
No filme “Moscou não acredita em lágrimas”, três jovens do interior vão para Moscou para se matricularem na universidade. Elas compartilham um dormitório, determinadas a alcançar o sucesso na cidade grande. Na primeira parte do filme, Ekaterina, a personagem principal, segue o conselho de sua colega de quarto e se passa por filha de um professor universitário quando começa um relacionamento com um belo moscovita de uma família de classe média. Ela logo engravida, mas assim que sabe da novidade, o rapaz a deixa.
A segunda parte do filme, que se passa 20 anos depois, mostra Ekaterina, uma mulher de sucesso, percorrendo o caminho de tecelã de fábrica a diretora de um grande empreendimento, depois de criar a filha sozinha. Sua vida privada, porém, ainda deixava muito a desejar.
Cena de "Moscou não acredita em lágrimas", dirigido por Vladímir Menchov, 1979.
Vladímir Menchov, 1979 / MosfilmEste “conto de fadas soviético” tem final feliz: a self-made-woman soviética de classe média termina no mesmo lugar em que começou: Ekaterina encontra o “homem dos sonhos”.
Reproduction of the miniature "In the reign of Grand Prince Ivan Danilovich Kalita"
Biblioteca Estatal da Rússia/Mikhail Filimonov/Sputnik“Moscou não acredita em lágrimas”, os russos dizem toda vez que as lágrimas, reclamações e problemas de alguém não conseguem gerar qualquer simpatia ou ajuda — um predecessor, portanto, de nosso contemporâneo brasileiro “chega de mimimi”.
Em 1866, a protagonista de em “Guerreira”, de Nikolai Leskov, tem o seguinte diálogo:
“— Olhe para as minhas lágrimas — diz —, para minhas lágrimas.
— Bem — digo — lágrimas, amiguinha? Lágrimas são lágrimas e eu até sinto muito por você. Mas Moscou não acredita em lágrimas, como diz o ditado. [Lágrimas] não vão fazer te render dinheiro.”
Tributos tártaros
A frase tem origens ainda mais antigas do que o romance de Leskov: de quatro a cinco séculos antes.
Uma hipótese é de que ela surgiu nos dias do antigo príncipe russo Ivan Kalita, famoso por seus terríveis tributos. Era o século 13 e o neto de Genghis Cã, Batu Cã, acabava de destruir os principados russos. Era uma época de luta interna e fragmentação feudal para a Velha Rus, sem nenhuma autoridade central: separados uns dos outros, os principais domínios competiam por influência e controle territorial.
Oprimidos pela Horda, alguns enfrentaram seus conquistadores em batalha, o que os enfraqueceu ainda mais; outros tentaram fazer acordos para se livrar das consequências desastrosas da pilhagem constante.
Sergey Ivanov. "Baskaki", 1909.
Associação de Museus "Museu de Moscou"/Domínio públicoUm dos proponentes das negociações com a Horda foi o príncipe Ivan. Depois de fazer um acordo com o cã, ele coletaria o máximo possível de tributos dos príncipes russos, em troca de não infligir ataques punitivos a eles.
Segundo os cronistas, o novo sistema de cooperação entre os Rus e a Horda teve suas vantagens: os ataques dos tártaros cessaram por um período de 40 anos. Naquela época, os principados conseguiram se restaurar e se fortalecer, o que foi suficiente para montar uma resistência e finalmente repelir os tártaros.
No entanto, os tributos de Ivan Kalita levaram todos ao desespero. Os números exatos são desconhecidos, mas os historiadores afirmam que eram comparáveis ao orçamento de um pequeno Estado. Às vezes, para coletar a quantia exigida, os príncipes tinham que pedir emprestado a comerciantes, inclusive estrangeiros. Muitos não conseguiam pagar sua enorme dívida até o final da vida, deixando o resto para seus descendentes. Ela ficaria conhecida como a “dívida dos bessermen” (“besserman” era como os russos chamavam todos os muçulmanos).
Depois de exercer essa influência colossal sobre os outros príncipes, Kalita acabou extraindo ainda mais dinheiro além dos enormes pagamentos - para as necessidades do principado de Moscou, segundo a história.
Assim, muitos iam a Moscou com apelos lacrimosos e apaixonados para que Kalita reduzisse as suas dívidas, mas ele não se deixava levar. Além disso, ele punia severamente os descontentes, muitas vezes publicamente. Acredita-se que aí resida a a origem real da frase “Moscou não acredita em lágrimas”.
O príncipe Ivan governou até 1340 e acumulou uma riqueza incalculável, que gastou na aquisição de novas terras. Aliás, o apelido “Kalita” significa “carteira gorda”, em russo antigo.
Tirania moscovita
Outra hipótese sobre a origem da frase remonta ao período posterior ao jugo tártaro-mongol: o século 15 e a época de Ivan 3°, também conhecido como Ivan, o Grande. Ele ganhou esse apelido por um bom motivo: sua principal conquista foi o fim do domínio da Horda sobre a antiga Rus, em 1480.
“Ivan 3°, rasgando a carta do Cã”, pintura de N. S. Chustov.
Museu de Arte Sumy. N. Kh. Onatsky / Domínio públicoDurante o governo de Ivan, o Grande, o período de segmentação feudal chegou ao fim, e a Rus se tornou um reino unificado. Seu território tinha sextuplicado, tornando-se maior que qualquer Estado europeu na época. O tsar comprou de volta os direitos de propriedade sobre as terras díspares, anexando-as a Moscou, e conquistou as que lhe eram recusadas. A principal aquisição territorial de Moscou foi a República de Nôvgorod. Esta terra escassamente povoada, com suas riquezas naturais e acesso ao mar, deixou de ser independente de Moscou após a conquista.
Alguns historiadores atribuem o ditado “Moscou não acredita em lágrimas” a esse período, embora a expressão fosse um pouco mais longa naqueles dias: “Moscou bate com um dedo do pé e Moscou não se deixa levar pelas lágrimas”. Bater com um dedo do pé fazia referência a um método usado em batalha para desestabilizar um inimigo, atingindo-o de tal maneira que ele perdesse o equilíbrio e caísse para trás.
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