Cena do filme russo “A Casa do Sol” (Dom Solntsa).
Garik Sukachov/Gorky Film Studio, 2010Quem eram os hippies soviéticos?
“Estes somos nós, os representantes de um novo movimento. Este movimento será o sistema de valores reais”. Assim, anunciou-se um novo grupo de artistas, músicos, errantes e espíritos livres em Vilnius (hoje, capital da Estônia), em junho de 1967, na primeira manifestação pública deste tipo registrada na União Soviética.
Como por ironia, esses soviéticos normalmente tinham origens cosmopolitas e prósperas, já que as únicas pessoas na URSS que tinham acesso às coisas que faziam delas “hippies” eram as famílias da nomenklatura (a elite soviética).
Um exemplo é o guitarrista Stas Namin, vocalista da banda Flowers, que foi apelidada de “Os Beatles Soviéticos”. Namin não sofreu quaisquer consequências por suas atitudes, então repreensíveis em outros cidadãos, porque seu avô, Anastas Mikoyan, foi um lendário bolchevique armênio e figura-chave na Revolução de 1917.
Cena do filme russo “A Casa do Sol” (Dom Solntsa).
Garik Sukachov/Gorky Film Studio, 2010O movimento hippie soviético lado a lado com a chegada de discos ocidentais em mercados negros de diversas grandes cidades soviéticas através da Europa Oriental.
Enquanto os norte-americanos denunciavam o consumismo, os hippies soviéticos ansiavam por jeans e acesso a música proibida.
Apesar disso, seria errado supor que a influência ocidental sobre o hippie soviético transformou o último em um simples imitador, já que praticamente não havia contato entre os movimentos.
Os problemas internos da URSS foram a lenha na fogueira do movimento: os hippies soviéticos eram um sintoma da lentidão da era Brejnev e do enquadramento do potencial criativo. A juventude soviética “sentiu um senso de falta de sinceridade [proveniente do Estado] e uma falta de fingimento [em si própria]”, segundo o historiador Zivile Makaillene.
O desejo de sentir algo além da promessa comunista (que lhes parecia vazia com a "grandeza" do trabaho do “homo sovieticus” e o serviço militar) foi a chave para atrair a juventude soviética descontente.
Alguns hippies canalizaram isso em uma liberdade criativa e vivendo como artistas nas kvartirniki (festas caseiras) e cafés como o "Saigon", em Leningrado (hoje, São Petersburgo), o “Café Moscou”, em Tallinn, e o “Lira”, em Moscou (onde se localiza atualmente aquele que foi o primeiro McDonalds da Rússia).
As praças nos bairros Chistie Prudi e Maiakóvsksia, em Moscou, também eram pontos de encontro populares.
Para outros seguidores do movimento, como o grupo de adolescentes de Lvov que compunha a comuna da "República do Jardim Sagrado", ser hippie era uma completa rejeição à modernidade soviética, uma enorme sede de escapismo que os conduzia ao ar livre, onde shows e partidas de futebol a céu aberto prevaleciam sobre o fordismo e as normas sociais.
Costumes e crenças
A mentalidade dos hippies soviéticos parecia ter saído de um livro de Jack Kerouac: a espiritualidade oriental do zen budismo e do hinduísmo era apenas uma ocupação mental para suas missões de carona e fazia parte de seu escapismo.
O fato de eles terem se voltado à meditação oriental foi rotulado como “ideologicamente perigoso” nos registros oficiais da KGB. Ao contrário de muitos de seus pares ocidentais, os hippies soviéticos não eram, em geral, inclinados ao maoísmo como parte de sua obsessão oriental.
Ainda mais "perigosa" para o sistema era sua propensão ao cristianismo. Devido a sua condição clandestina na URSS, a religião era ainda mais atraente aos hippies do país.
Cena do filme russo “A Casa do Sol” (Dom Solntsa).
Garik Sukachov/Gorky Film Studio, 2010Com cabelos compridos e as roupas surradas, os hippies soviéticos até pareciam santos orientais e sofriam socialmente por causa disso.
Afinal, o desleixo é visto até hoje como um traço negativo na Rússia e foi dez vezes pior na moda soviética dos anos 1970.
Uma camada mais ampla da sociedade era influenciada pela imprensa soviética, que publicava artigos classificando os hippies como “sujos”, “assexuados” e “antissoviéticos”. Alguns hippies lembram de ter sido espancados por transeuntes na rua e dizem ter sido maltratados.
Assim como no Ocidente, a música era o principal modo de expressão na cultura hippie soviética.
O movimento abarcava muitos intelectuais, mas a literatura não estava na vanguarda. Ao invés disso, a inspiração vinha pelas ondas da rádio estrangeira, tocando Jimi Hendrix e Janis Joplin.
Os hippies soviéticos também buscavam transformar seu movimento em algo estético para combater a falta de boa música no ecossistema soviético.
Acompanhando a música do Ocidente, muitas das primeiras bandas hippies soviéticas, como a “Rubinovaia Ataka” ou a “Vtoroe Dikhanie”, faziam apenas covers do que ouviam em rádios estrangeiras. A banda psicodélica letã “Menuets” chegou à TV estatal em 1971.
Mais tarde, surgiram roqueiros como Vladímir Kuzmín e sua banda “Dinamik”, além de artistas como Víktor Tsoi e Borís Grebenschikov, que não se encaixavam necessariamente no rótulo “hippie”, mas eram idolatrados mesmo assim.
A música estava obviamente fadada a enfrentar o mesmo destino de todos os costumes hippies soviéticos: o escárnio. Um dos hippies retratados no filme estoniano "Nõukogude hipid” ( “Hippies soviéticos”, 2017) chegou a ser enviado a uma enfermaria psiquiátrica pela mãe por causa do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles
Algo que foi completamente relevado nos hippies soviéticos foi seu uso de drogas. Apesar de o governo reprimir fortemente drogas pesadas, os hippies parecem ter encontrado uma brecha com a maconha.
“Não tinha problema acender um beque porque ninguém naquele o tempo sabia exatamente o que era aquele cigarro de cheiro estranho”, conta o diretor de cinema Terje Toomistu,
Na mesma “vibe”, o governo fez vista grossa ao haxixe, produzido principalmente na Ásia Central.
Uma pedra no sapato do sistema
Quer os hippies representassem um fracasso do sistema soviético ou apenas uma alternativa inofensiva, as autoridades deixaram claro que sua cultura não era bem-vinda.
As reclamações das autoridades sobre os hippies eram principalmente ideológicas - sua cultura nem sempre era abertamente política, mas sua própria existência minou o sucesso de "projetar a alma humana", seja por meio da força militar ou trazendo modernidade ao povo.
Afinal de contas, os hippies eram pacifistas e frequentemente não trabalhavam, além de voluntariamente se registrarem em enfermarias psiquiátricas e receberem sedativos pesados só para evitar o recrutamento no exército. Assim, aos olhos do governo eles não podiam alegar ser apolíticos.
Cena do filme russo “A Casa do Sol” (Dom Solntsa).
Garik Sukachov/Gorky Film Studio, 2010
Nos hospitais psiquiátricos, eles tinham os elementos que faziam parte de sua individualidade anulados. “Enquanto eu dormia, cortaram meu cabelo. Depois, deixaram-me ir”, conta um hippie da Lituânia.
Os membros da comuna "República do Jardim Sagrado" eram enviados a "reuniões preventivas" com o Komsomol (a organização juvenil do Partido Comunista) local, e foram muitas vezes delatados às autoridades pelos próprios pais.
Sua música “estrangeira” também era um problema constante para os poderosos, que os castigavam impiedosamente.
A KGB se infiltrou em shows de hippies soviéticos em abril de 1970, em Vilnius, e em junho de 1971, em Moscou. Em ambos os eventos, a polícia deslocou caminhões ao local para fazer detenções massivas de frequentadores.
O show na capital russa transformou-se um evento anual ao ar livre para hippies no Parque Tsaritsino.
Apesar de o total de hippies da União Soviética provavelmente ter sido de apenas alguns milhares de pessoas, eles fizeram muito para expor as deficiências e a hipocrisia do autoritarismo soviético.
Afinal, este era um país oficialmente coletivista e que afirmava defender a paz mundial por meio do Conselho Mundial da Paz e, ao invés disso, acabou de calças curtas quando confrontado por alguns cabeludos que fumavam maconha.
Se os hippies tinham qualquer culpa no cartório, esta era de terem escutado demais seus professores de história soviéticos, que disseram que tudo que havia de bom vinha da ação coletiva.
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