O ano era 1979 e a moscovita Elena Vássina, hoje professora do departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo, estava prestes a se formar na faculdade de Letras da Universidade Estatal de Moscou.
“Fui convidada para trabalhar como guia-intérprete no Comitê Central do Partido e essa foi a primeira vez que me encontrei com brasileiros. Eles eram comunistas convidados do Partido e tinham estado na clandestinidade, por isso, tinham medo até de passear nas ruas movimentadas do centro de Moscou. Então, fomos almoçar no hotel e eles me perguntaram sobre o mausoléu do Lênin. Eu disse a eles que a gente tinha que falar com o departamento de relações internacionais do Comitê Central para entrar, e eles me perguntaram por quê. Eu respondi: ‘Por que tem uma bicha enorme na frente!’ E eles me perguntavam, indignados, ‘mas que bicha?!’... E eu dizia: ‘Vocês não viram a bicha enorme na frente do mausoléu?! Não dá para entrar!’”, relembra Vássina, aos risos.
A professora da USP Elena Vássina, em Moscou, no final dos anos 1970.
Arquivo pessoalAcontece que, antes do ocorrido, Vássina tinha tido contato apenas com o português de Portugal - em que “bicha” significa “fila” - e não tinha ideia da variante em português brasileiro.
“Eu falava isso com a maior ingenuidade porque conhecia apenas a palavra em português de Portugal. Acho que até hoje esses brasileiros contam a história sobre a enorme ‘bicha’ que ficava na frente do mausoléu durante a URSS e que só o Comitê Central conseguia desviar para as pessoas passarem”, completa.
A 'fila do mausoléu' entra para o léxico
A fila na frente do mausoléu de Lênin é, aliás, tão famosa que entrou para o léxico russo. Assim, é comum ouvir falar dela até hoje em frases como a seguinte: "Decidi não ir àquela exposição na Galeria Tretiakov, porque tinha uma fila como a do mausoléu!"
A comparação à famigerada “fila do mausoléu”, frequente nos papos dos russos, provavelmente não faz sentido para estrangeiros pouco versados na realidade soviética. Explicamos: o mausoléu em questão é o de Vladímir Lênin. O líder da Revolução Russa, Vladímir Lênin, morreu em 1924 e, quando isso aconteceu, os bolcheviques decidiram não enterrá-lo, mas embalsamar seu corpo e construir um mausoléu especial, onde ele fica exposto ao público há quase 100 anos.
Lênin era uma espécie de “deus” no panteão soviético, o ídolo da nação, e quase imediatamente após sua morte uma enorme multidão de trabalhadores e camponeses fez fila para ver seu corpo em exibição.
A fila parecia nunca ter fim, mas mesmo assim a visita se tornou tradição. Pioneiros (membros do grupo juvenil soviético equivalente ao dos escoteiros), engenheiros, soldados e delegações estrangeiras ficavam em fila e todo um turismo passou a girar em torno do mausoléu. Não importava se era um dia quente de verão ou se caía uma nevasca de inverno, as pessoas faziam enormes filas para ver Lênin.
Até hoje, pode levar várias horas para chegar até o corpo de Lênin, e essa olhadela no líder do proletariado dura menos de um minuto, pois os guardas do mausoléu não deixam os visitantes se deterem nem um segundo a mais que o necessário para a breve caminhada ao seu redor terminar. Assim, quando se diz “uma fila como a do mausoléu”, isso significa uma longa espera.
“Havia sempre uma fila enorme para o mausoléu, de horas e horas de espera e que passava por todo o Aleksándrovski Sad (Jardim Aleksándrovski)”, conta Vássina.
Na verdade, o povo soviético estava acostumado a filas colossais: no mausoléu, no supermercado e em qualquer loja, sempre que apareciam bens escassos. Às vezes, as pessoas ficavam em filas a noite toda para comprar sapatos ou um sofá.
Imediatamente antes da pandemia de Covid-19 as filas ainda eram comuns: no teatro, no zoológico, em exposições (especialmente para a Galeria Tretiakov) e em feiras de livros. Quando um russo vê uma fila... imediatamente lhe vem à cabeça que vale a pena entrar nela: com certeza deve ter alguma vantagem!
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